Por que a Apple é líder em privacidade no smartphone?

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© Screenshot: Apple; Montage: nextpit

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É difícil de acreditar: o mercado de coleta e comercialização de dados pessoais cresceu para um faturamento global de 1,3 trilhão de reais (US$ 227 bi). Por ano! Os smartphones em particular ajudaram este mercado a explodir e a coletar muitos dados em quase todas as áreas de nossas vidas, muitas vezes sem nosso conhecimento e, menos ainda, com o nosso consentimento.

A Apple em especial está procurando ir à contramão disso e introduziu uma série de recursos melhorados de privacidade no iOS 14 e iPadOS 14 para ajudar os usuários a tomar decisões claras sobre seus dados e como eles os compartilham.

O grande desafio de escrever sobre algo que você não pode ver, ouvir, sentir ou cheirar

Antes de iniciar este artigo, eu me perguntei por um tempo de que forma deveria abordar o tema. Deveria ser uma notícia sobre a Apple e seus esforços em proteção de dados e privacidade, falando em seguida da atualização do iOS 14.5 e do iPadOS 14.5?

Ou mostro a história de John e sua filha Emma, dois personagens fictícios que a Apple usou no conto "Um dia na vida dos seus dados" para mostrar quantos dados são gerados em nosso uso diário de smartphone? A propósito, para quem é recém-chegado na conversa sobre rastreamento de dados, este exemplo da Apple traz uma ideia geral de uma maneira rápida, simples e informativa.

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Em " Um dia na vida dos seus dados", a Apple descreve de forma muito clara como os dados são coletados e o que pode ser feito com eles / © Apple

Acabei optando por algum tipo de editorial com elementos de notícias. Não sou especialista em privacidade, nem nunca vi um perfil completo oferecido por um vendedor de dados. No entanto, estou profundamente envolvido profissionalmente com a Internet e suas possibilidades há mais de duas décadas.

Eu mesmo planejei campanhas de marketing que me deixaram quase tonto ao ver as possibilidades de direcionar uma publicação para atingir pessoas. E como CEO de uma revista online, sei o quanto a privacidade pode ser desafiadora às vezes.

A privacidade é a radioatividade da internet. Apenas completamente subestimada.

Pode parecer radical. Mas a coleta de dados na web tem muito em comum com a radioatividade. É silenciosa, invisível, sem cheiro e você não percebe ela. Mas existe, você já ouviu falar dela, e sabe que não é tão boa assim. Mas quem entraria voluntariamente em uma área radioativamente contaminada sem o equipamento de proteção adequado?

Na web, fazemos isso todos os dias. Segundo a Apple, cada aplicativo iOS e Android tem uma média de seis rastreadores incorporados, que coletam nossos dados e depois os negociam com os vendedores de dados. Esses vendedores podem então agregar isso para desenhar um perfil abrangente de praticamente todos nós.

O problema é que não estamos realmente cientes deste processo. Damos nosso consentimento para que isso aconteça ao aceitar (enormes) políticas de uso e privacidade, algumas das quais são difíceis de entender, sem nenhuma transparência real.

De uma coisa tenho certeza: se soubéssemos exatamente quantos dados estamos entregando a desconhecidos e o que pode ser feito com eles, estaríamos igualmente preocupados como se tivéssemos que viver e trabalhar bem ao lado de uma usina nuclear.

A Apple quer criar transparência para os usuários

É exatamente neste ponto — a nossa ignorância — que a Apple entra, a empresa já anunciou no ano passado que quer obrigar os desenvolvedores de aplicativos a obter o consentimento dos usuários para a coleta de dados. Além disso, você pode ver diretamente ao instalar um app quais informações pessoais o programa acessa e também a que dados o seu perfil estará vinculado.

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Apple inclui novas opções de privacidade com o iOS 14.5 / © Screenshot: Apple; Montagem: NextPit

Assim você pode avaliar antecipadamente quais informações pessoais um desenvolvedor de app obtém a seu respeito e quais necessidades ou consequências estão envolvidas nesta coleta.

Quem utiliza Android também recebe informações semelhantes — embora não tão detalhadas — antes de instalar novos aplicativos. Entretanto, a Apple vai um passo além e dá a opção de impedir que o desenvolvedor do aplicativo rastreie dados mesmo após a instalação do software. Um menu permite que você retire seu consentimento para coleta de dados, se necessário, sem alterar a funcionalidade básica do app em si.

A Apple construiu um ecossistema inteiro para este fim, para fornecer aos desenvolvedores de aplicativos os meios para obter estatísticas importantes sobre a instalação e uso, mas sem permitir que conclusões sejam tiradas sobre o indivíduo.

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Os quatro pilares da política de privacidade da Apple / © Apple

Pode ser uma virada de jogo para toda a indústria

O que deveria ser algo natural pode se transformar em uma revolução para abalar toda uma indústria. Como já disse no início, há uma quantia inimaginável de dinheiro denso feita a partir da coleta de dados, seu processamento e utilização comercial.

O Google e o Facebook, em particular, ganham bilhões com publicidade personalizada. O Facebook é conhecido por acessar muitos dados pessoais através de seus aplicativos — tais como Instagram e WhatsApp —, e utilizá-los para fornecer perfis extraordinariamente precisos para seus clientes (as empresas anunciantes). E o Google ganhou o apelido de "polvo de dados" no início, muito antes de a empresa ter acesso a bilhões de smartphones através do Android.

A Lei Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR) foi a primeira vez em que os coletores e processadores de dados pessoais foram pressionados de alguma maneira, incluindo nós, editores online, é claro. As regras serviram como inspiração para a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrou em vigor no Brasil em setembro de 2020.

Mesmo que se possa argumentar sobre o tipo e a implementação das leis de proteção de dados, elas são importantes e necessárias. As redes de publicidade e coleta de dados não deveriam criar perfis sobre nós sem nosso consentimento, o que acontece hoje tanto para adultos quanto para crianças.

O fato da Apple fazer frente aos desenvolvedores e grandes redes de anúncios, obrigando-os a agir com transparência em relação a nós, é notável e corajoso. E já não era sem tempo.

A proteção de dados não é importante apenas por razões éticas. Precisamos dela para proteger nossas democracias também

Vou apresentar uma tese bastante delicada: redes sociais, bolhas de filtragem, direcionamentos de conteúdo e abordagem de pessoas que têm afinidade com certos tópicos também tornaram nossos sistemas políticos vulneráveis nos últimos anos. Com dinheiro e os dados certos, campanhas de desinformação e a divulgação de propaganda populista podem ser perfeitamente controladas.

Banners disfarçados de notícias podem agora ser encontrados em abundância sob muitos artigos na internet. O perigo é que as pessoas que estão sendo visadas por uma publicidade mais precisa não costumam nem perceber isso.

Você pode se perguntar por que há anúncios de férias na praia por todos os lugares, sendo que apenas viu um folheto de papel da agência de viagens. Mas as empresas podem juntar os pontos, caso um app tenha registrado algo como a sua visita à agência de viagens e a duração da mesma, que pode ser lida com os dados do GPS.

Em meio a uma ditadura ou regime que esteja disposto a abusar de seu poder, os críticos podem ser identificados e rastreados muito rapidamente através de seus smartphones, mesmo em meio a grandes multidões. O New York Times publicou uma reportagem muito precisa sobre como a questão da privacidade é indispensável para o funcionamento das democracias e que a janela para a mudança é pequena.

Você não tem nada a esconder. Mas também não quer que se saiba tudo sobre você, certo?

"Eu não tenho nada a esconder" vêm sendo usado durante anos como o argumento de quem é perguntado sobre o manuseio sem critério dos seus dados pessoais.

É compreensível argumentar desta forma. Afinal, você não ouve, não cheira, nem sente nenhum dos efeitos. Na verdade, às vezes, você nem sequer é incomodado por eles. Algumas pessoas até consideram a publicidade personalizada como uma espécie de serviço.

Até entendo parcialmente esta linha de raciocínio. Faz mais sentido para mim ver banners anunciando uma bicicleta nova do que roupa íntima feminina. Entretanto, o progresso técnico está avançando em ritmo acelerado e nós, humanos, não somos mais capazes de acompanhá-lo com a mesma velocidade.

Acredito que a maioria das pessoas não pensa se haverá consequências caso apareçam no fundo de uma foto em uma manifestação. Mas o software para procurar todas as imagens disponíveis na rede por um rosto qualquer já existe.

Imagine que você quer entrar nos Estados Unidos, mas uma luz de alerta pisca no computador quando você escaneia seu passaporte e o agente da imigração o afasta. Por quê? Nem mesmo o funcionário atrás da janela de acrílico sabe o motivo.

Da mesma forma, o funcionário do banco que está prestes a lhe negar um empréstimo está sentado na frente de um computador. Você parece muito deprimido recentemente ao usar seu assistente de voz? Você não está fazendo exercícios suficientes? Você tem os amigos errados no Facebook? Você estava no lugar errado na hora errada, talvez apenas por acidente? Qualquer coisa pode ser motivo para aprovar ou negar o seu crédito.

Mesmo (ex-)presidentes dos EUA não estão a salvo do rastreamento de dados

O fato de que a proteção de dados é particularmente importante — ou talvez especialmente — para as pessoas mais expostas em nosso planeta pode ser visto no exemplo de Donald Trump e do New York Times, que em uma reportagem abrangente sobre a proteção de dados usou o então presidente dos EUA como exemplo para ver como é fácil ser rastreado com dados gratuitos. O jornal conseguiu criar perfis de movimento do presidente e dos principais assessores.

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O New York Times foi capaz de criar perfis de movimento de Donald Trump e empregados usando dados livremente disponíveis / © New York Times

Se um meio de comunicação com recursos limitados já consegue espionar o ex-presidente americano desta forma,  o que as pessoas com recursos ilimitados podem fazer?

O compromisso da Apple precisa ser apoiado por outras empresas

A priorização da segurança de dados não é novidade para a Apple. Mesmo antes, a empresa com sede em Cupertino já estava à frente da concorrência nesta questão. Mas o passo dado com o iOS / iPadOS 14.5 aparentemente força até mesmo a reação de outros gigantes da tecnologia.

Enquanto Mark Zuckerberg supostamente se expressou internamente com uma declaração de guerra ("Devemos causar dor à Apple"), o Google parece entender os sinais dos tempos e a vontade do público. Em um post no início de março de 2021, o Google publicou que eles pretendem abrir mão da publicidade personalizada a partir do próximo ano.

Ainda não está claro se o Google anunciou a iniciativa em resposta aos avanços da Apple em termos de proteção de dados. Para nós, porém, é uma boa notícia: são passos na direção certa.

Mas ainda há um longo caminho a percorrer.

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2 Comentários
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Todas as mudanças foram salvas. Não há rascunhos salvos no seu aparelho.
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Todas as mudanças foram salvas. Não há rascunhos salvos no seu aparelho.

  • 73
    Jairo rios 12/04/2021 Link para o comentário

    Interessante a postura do Facebook, passou da hora deste conglomerado ser implodido.


  • Rafael Nunes 26
    Rafael Nunes 12/04/2021 Link para o comentário

    Esse é um assunto que poderíamos ficar horas discutindo. Mas uma coisa que gostaria de acrescentar é; diante de tudo o que vemos a briga entre EUA e China também é pela posse de dados. Porém a grande maioria das pessoas não percebem um ponto muito crítico nisso, as pessoas estão com os olhos atentos somente para China como o grande vilão da história, mas o problema maior nisso não acho que seja a China, e sim os EUA. Eles sim tem a maior obtenção de dados no mundo inteiro, e isso vem de anos e não de agora. Porém com essa crescente tecnologia que vivemos agora, outros países estão fazendo o mesmo e a China não quer ficar para trás também.

    Outro ponto que vejo de muito prejudicial nisso é a massa ingênua e ignorante de pessoas que não percebem ou não dão a mínima contra isso, pincipalmente o brasileiro que não busca conhecimento e não se interessa por esses tipos de coisa, mas sim o simples entretenimento de usar a internet (veja no caso do BBB, reflete o tipo de pessoa que nós somos.) Creio que no nosso caso, vamos ser um país onde a venda de dados será uma das maiores do mundo, dados esses que serão vendido para os EUA e troca de acordos que são aparentemente benéficos para o país. Não é por nada, mas o Brasil é inteiramente espionado pelos EUA e as pessoas não percebem isso.

    Fico pensando, por exemplo, na quantidade de informação aquele App Faceapp obteve quando uma massa de gente fez uso. Aquilo tem um poder que as pessoas não fazem ideia de como pode ser usado, principalmente no futuro. Parece loucura, mas de tanta coisa que já vimos, imagina o que podem fazer com essas informações.

    Acho que hoje, dados vale muito mais do que dinheiro. E é por isso que no mundo inteiro isso está sendo discutido. e os EUA está arrumando confusão com diversos países e empresas, pois eles sabem que não são só eles mais que possuem essas informações.

    Edson F.Rubens EishimaPedro